Nunca gostei muito de ficção científica, mas, vamos lá, quero começar hoje com uma hipótese muito louca.
Vamos supor que, neste mundo altamente tecnológico, onde tudo é fast-alguma coisa, a gente pudesse comprar filhos no supermercado – não vou nem falar em aquisições via e-commerce, hein???!!! Mas enfim, você vai até a prateleira e escolhe o herdeiro(a) que vai ter, do jeito que melhor lhe apetece: cor da pele, dos cabelos, dos olhos…
Tá, vamos imaginar um pouquinho além: vai que Deus, muito camarada com você, ainda lhe dá a chance de escolher traços da personalidade do seu filho, a universidade onde ele vai estudar, as viagens que vai fazer… Hum, ficou interessante? Legal, então bora continuar…
Depois de muito pesquisar, analisar todos os prós e contras, de modo que você fique em vantagem sempre - claro, óbvio, of course! -, você decide o que comprar. Todo(a) feliz empurra o carrinho rumo ao caixa quando, sem querer, vê um novo ‘modelo’ de filho com as seguintes etiquetas pregadas e escritas com aquela caneta Bic bem degastada, tamanho de fonte mínimo: com autismo, com síndrome de down, com microcefalia, com paralisia cerebral, surdo, cego… E aí? Você trocaria a sua compra?
Eu sei e concordo com você, o teor dessa história pode beirar o surreal. Mas, acredite, ela faz parte de uma marca que carrego comigo. Explico.
Aproximadamente quatro meses depois de ter recebido o diagnóstico de que o João Lucas está no espectro do autismo, fui conversar com o pastor da igreja que eu costumava frequentar – digo costumava porque, infelizmente, deixei de ir em função da correria do dia a dia. Justificativas pouco sólidas à parte, o fato é que eu estava ansiosa, mas extremamente feliz, com a chegada daquele domingo.
Ao final do culto, após conversar com alguns membros da igreja, o pastor nos vê. Eu e o Thiago, entre sorrisos de nervosismo, nos aproximamos dele.
E aí conversa vai, conversa vem… questionamento de pais aflitos vai, questionamento de pais aflitos vem… e…
“Vamos supor que, neste mundo altamente tecnológico, onde tudo é fast-alguma coisa, a gente pudesse comprar filhos no supermercado… Mas e aí, Carla, você escolheria o João Lucas?”
Ops, deu ruim! Não me lembro se a garganta secou, se a mão tremeu, se a voz falhou, mas antes que qualquer sinal inconveniente pudesse ser interpretado, me saí com essa:
— Claro, lógico, pastor!!!!
Da sua sabedoria de mais de 50 anos de estrada, com uma esticada serena dos lábios, o pastor repetiu a pergunta:
— Mesmo? — Ann, hum, é é é é… — Sejamos sinceros um com o outro! Se pudesse escolher, você não pegaria!
Comecei a desmontar. Como eu me conhecia tão mal! Tentei insistir em negar o inegável.
— É, verdade, acho que eu pegaria o JL, mas sem o autismo. Sim, é isso, pastor, gostaria de ter o JL, meu filho, mas sem o autismo que o impede de falar ‘eu te amo’, sem o autismo que atrai olhares preconceituosos, sem o autismo de movimentos repetitivos e rotinas fixas, sem o autismo, sem o autismo, sem o autismo - seria o que teria gritado se as palavras não começassem a se afogar nas lágrimas que desciam rosto abaixo, feito cascata… — Então você está me dizendo que seu filho sobraria na prateleira? Ninguém o pegaria, você não o pegaria! Porque o João Lucas sem autismo não é o João Lucas; o João Lucas sem autismo não existe.
PQP! Como costuma dizer minha irmã mais nova, agora f**** a p**** toda! Se eu tivesse coragem de xingar, era isso que sairia entre um urro e outro, porque naquele momento eu perdia totalmente o controle sobre a minha vulnerabilidade, eu não conseguia conter mais aquele choro soluçado, que jorra das entranhas, da alma… Meu Deus, eu não sou aquela mãe que eu achava que era! Cadê o meu amor incondicional? Cadê? Cadê? Cadê a minha capacidade de falar eu te amo mesmo que não ouça o mesmo? Cadê, Carla, cadê, Carla?
Chegar a essa constatação – “de que eu idealizei, não somente o meu filho, mas também a mim” - doeu demais, doeu de sangrar, mas, paradoxalmente, foi extremamente libertador. Sou grata demais a Deus por ter tido essa conversa sincera com o pastor naquela manhã. Entendi, de uma vez por todas - espero que sim! -, que todos somos totalmente imperfeitos.
Quem eu julgo ser pra escolher meu filho? E se o JL também tivesse a chance de escolher a mãe na prateleira do supermercado, será que ele ficaria comigo? Com todos meus defeitos, medos e indecisões? Ou será que, a caminho do caixa, me trocaria por uma mãe melhor?
Entre essas interrogações, coloco uma das falas da Dr. Jane, minha terapeuta, que citei no texto passado, O poder da vulnerabilidade:
“Carla, quando você não quer sentir coisas ruins, você acaba abrindo mão dos sentimentos bons também, eles ficam aprisionados dentro de você”.
Sim, eu penso e sinto coisas ruins. Todos nós. Como bem exemplificou a colega Erika Lettry em seu texto de estreia aqui no blog, Aceitar a imperfeição nos ajuda a evoluir:
“O garoto olhou intensamente nos olhos de seu avô e perguntou: ‘E qual deles vence? (se referindo ao lado bom e ruim que todos temos). Ao que o avô sorriu e respondeu baixinho: aquele que eu alimento.”
Descobri que, no meu caso, escrever, praticar algum exercício físico, ler livros e assistir a filmes que edificam, são ferramentas que canalizam minha agressividade para longe das relações interpessoais.
E ainda tem um conselho do apóstolo Paulo do qual gosto muito:
“Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai.” Filipenses 4:8
E você? Já parou e refletiu sobre qual lado tem alimentado com mais intensidade e de forma mais constante no seu dia a dia? Porque a escolha, ah, a escolha, essa sempre é nossa.
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